quinta-feira

Conto: Lágrimas Flácidas

Se meu sonho tornou-se realidade, não foi por minha culpa. Alguns dirão que foi premonição, mas eu não iria tão longe. Credito à obra do acaso e minha queda por tragédias oníricas. Agora, depois de tantos anos do ocorrido, percebo que o que vi com os olhos fechados, foi mais intenso do que o real, mas não menos trágico. É que o real nos cega mais.
Aquela manhã nasceu a fórceps. As puxadelas vigorosas de meu pai, indicavam a necessidade de acordar, por minha vontade continuaria dormindo. Foi uma luta de titãs, Morpheus contra Hércules. Não sei se a impressão era de eu pesar 300kg, ou se meu corpo de metal era atraído por uma força magnética. Levantei-me cambaleante, guiado pelo instinto cego, que me conduziu ao lavabo.
Todos em casa estavam eufóricos, não porque era sábado, mas porque meu pai cumpriria uma promessa que se arrastava por meses: descer para a praia. Minha mãe madrugara com os preparativos. Lanches e frituras eram organizados cuidadosamente em uma caixa de isopor, sob medida para o porta-malas da Variante. Meu pai e eu trabalharíamos até o meio-dia, quando a odisséia teria inicio. Não pela distância, mas pela aventura, as peripécias, o inesperado já esperado. Quando se têm uma Variante as voltas com a aposentadoria por tempo de serviço, qualquer viagem é uma odisséia.
Sentado à mesa com o café servido (pão francês, manteiga e mortadela), pude perceber a excitação de meus irmãos, eles que tinham apenas o passeio pela frente, diferente de mim. Sem muito pensar nas conseqüências, profetizei num brado ruidoso de uma voz que inaugura a manhã:
- Pai, o senhor não deveria ir trabalhar hoje, estou com um mau pressentimento.
Olhos vidrados pairaram sobre mim, como se naquele instante um espírito zombeteiro houvesse baixado. Meu pai olhou-me com uma mescla de incompreensão e reprovação. Com tal semblante, nenhuma outra palavra ousaria fugir de minha boca. Por um curto espaço de tempo, minha cabeça tornou-se uma câmara de gravidade zero, os pensamentos de chumbo flutuavam como poeira. Meus irmãos caíram na gargalhada, minha mãe ignorou, preferiu ajeitar as latinhas de cerveja no outro isopor e mudar de assunto. “Bem... mais tarde vou até a padaria comprar o gelo, viu”. Senti-me um náufrago falando sozinho. Sem outra solução asfixiei o assunto, morreu implorando misericórdia.
Vesti uma roupa surrada e segui no encalço de meu pai. Iríamos de lotação, meu tio ainda estava com o carro. Pedira emprestado fazia dois dias, queria impressionar uma coroa, descoberta em um forró. Meu tio é um daqueles caras, que nunca se contentou com apenas uma mulher: “se tem sete pra cada homem, pra que desperdiçar”, dizia rindo e, invariavelmente, antes ou após um gole de cerveja. Enquanto esperávamos o ônibus, da boca de meu pai não saiu nem um projétil, permaneceu calado, olhava-me de soslaio enquanto tragava ferozmente a fumaça do cigarro. Se o cigarro lhe servia como tranqüilizante para sua ansiedade, não era verdade no ponto de ônibus. É que ele não admitia desperdiçar nada, tinha que ser mais rápido que a lotação. Então se esforçava como um garoto esfomeado, que não quer dividir o lanche com o colega e põe um hambúrguer inteiro na boca.
Embarcamos, e a bituca foi lançada na sarjeta. O cobrador não devia ter espelho em casa, ou acordou encima da hora. O cabelo era uma babel de direções, a barba certamente fora feita às cegas. Os olhos não tinham visto água, a secura lhes consumia com resquícios do descanso noturno. As pessoas o encaravam com uma visível vontade de rir. Por sorte havia um banco vazio nos fundos, sentei na janela e busquei a calçada. Um senhor vestido de mágico, montava uma espécie de tenda, tinha um rosto cravejado de experiências. Alguns bancos à minha frente, uma garota torcia o pescoço e me encarava, volvia rindo aos cochichos com a amiga ao lado. A pele do cobrador pousou sobre mim, imaginei-me no lugar dele. Será que eu estava da mesma forma? Exposto aos risos furtivos do ridículo. Preferi acreditar que ela estava a fim de mim. Mas eu, tímido que sou, não sustentei suas miradas inocentes ou seriam lascivas? Não sei, não tenho idade para distinguir. Lembrei do beijo que meu pai trocou com minha mãe de manhã, aquilo sim parecia lascivo, digno de ser o último, mas como ele poderia saber. Eu fiz o possível:
- Pai, bem que podíamos dar um cano e ir direto pra baixada.
- Mais uma palavra e teremos uma boca a menos na praia. Em toda a minha vida de trabalho nunca faltei, não será hoje.
O coletivo estacionou no terminal. A mocinha passou me encarando, desta vez devolvi-lhe imponente, mas logo ela virou fumaça. Lembro mais do pingente em sua gargantilha: um pássaro de asas abertas e garras de felino. O ônibus seguinte estava lotado, os corpos se empurravam mutuamente, disputavam o pequeno espaço como hienas por uma carcaça deixada para trás.
Depois de dois ônibus e uma caminhada breve, o esqueleto de um aranha-céu nos cumprimentou com uma mesura sólida. Os peões se espalhavam pela construção como cupinzeiros de capacete. Cada um tinha seu serviço, sua direção, suas ordens à cumprir. Eu, inexperiente, não tenho direito nem a um chefe, meu pai faz as vezes e eu faço o possível. Aprender o oficio do pai, pedreiro há 25 anos, não é uma escolha que se faça por livre interesse, foi obra da necessidade e da vadiagem. Em casa, meu pai não admite ninguém acima de 12 anos que não trabalhe.
Areia, pedra, cimento, água. Os diferentes se misturavam para formar algo uniforme; formar o chão onde pés descalço passeariam, pisadas firmes, cambaleantes, claudicantes. O sonho da noite me visitava num vendaval de imagens, como um pêndulo me conduzia de um lado para o outro. Minhas mãos, automatizadas alcançavam os tijolos, meu pai os assentava com maestria. Procurava fechar a porta da consciência, numa tentativa de deixar a ventania sem efeito. As paredes de tijolo se delineavam como a maré noturna. De onde eu estava, podia ver as cabeças que andavam pelo passeio. Calvos, cabeludos. Cabelos curto, comprido, chanel, louros, negros, castanhos, ruivos, black power, lisos, encaracolados. Um bêbado fazia da garrafa vazia seu mega-fone: “o mundo não espera, quem quiser embarcar que chegue na hora... As estrelas esqueceram que não existem, por isso continuam brilhando”. O som de uma britadeira penetrou avassalador, preencheu de impactos a construção desparedada. As palavras de meu pai pousaram em meus ombros e me sacudiram.
- Filho, está comendo moscas? Alcance logo esse tijolo.
A grua, maneta por natureza, lançava seu único braço gigante içando as toneladas de ferro e dispondo cada barra em seu devido lugar. Tudo ali era grandioso, mas muito mais quando visto de baixo, da rua. Quando se faz parte da construção, se vê que nada se faz de grandioso, sem a junção das pequenas partículas. Sentia-me um minúsculo átomo esforçando-se para fazer a diferença. Do patamar de baixo vinha uma música melosa, as notas enrolavam-se à sonoridade pra dizer que as coisas do coração só o coração pra entender. Ele pedia que ela voltasse, que desse uma chance, mas ela se mostrava relutante. Depois de tantas falsas promessas, era difícil acreditar. Ela dizia que as palavras não lhe transmitiam nada, seu olhar sim. E aquele olhar ela conhecia bem, ia na contra-mão dos seus interesses.
Com o peso de um prédio sobre a cabeça, meu pai sentou-se para descansar, retirou da bolsa o lanche que minha mãe havia preparado. Ofereceu o meu, disse que estava sem fome, ele acabou devorando tudo sem demora. O vazio que sentia em meu estômago não era fome, a angústia comprovava a teoria de que tudo é vazio. Não havia onde eu pudesse me agarrar, o nada preenchia todos os espaços. O sol à pino desferia suas lanças douradas sobre mim, o transpassar em meu corpo prenunciava a dor que estava por vir. Meu pai levantou-se feito máquina e pôs-se a assentar argamassa e tijolos. As feições sérias criavam uma espécie de escudo, não misturava conversa com trabalho. As vezes ficava imaginando o que lhe passava pela cabeça. Quantos fantasmas eram diariamente alimentados por pensamentos enclausurados. Dava-me a impressão que ia explodir, tantos pensamentos querendo passagem e não conseguindo. Uma bexiga com água vertendo em seu interior, uma hora ou outra explodiria.
Um sujeito que conseguia ser mais sisudo que meu pai, se materializou bem ao meu lado.
- Bom dia Seu Zé. Já está de bom tamanho, podes carregar teu esqueleto daqui, e bom descanso.
Meu pai agradeceu. Tão logo o homem desapareceu, fizemos o mesmo. A construção continuaria a ser edificada mesmo sem nós, a partir de agora somos irrelevantes. Os passos de meu pai eram espaçados e lépidos. Tinha que correr para acompanhá-lo. Uma voz me apunhalou pelas costas. O susto foi pelo inesperado. Era meu tio que vinha nos buscar. A Variante estava um brinco, ele se esforçava para aparentar. Ao contrário do meu pai, meu tio era uma metralhadora. Não sei se tudo o que dizia era verdade, provavelmente não, mas ele conseguia impressionar o mais apático dos homens. Me perguntava o que ele era capaz por um rabo de saia. O tráfego de veículos era intenso, meu pai parecia não dar atenção ao irmão tagarela, mantinha-se no foco da rua. É difícil ter pressa quando se está amarrado. Os cigarros passavam da carteira para sua boca, se consumindo num piscar dos faróis. A sorte é que já estávamos perto de casa.
O estrondo vazou pelos vidros do carro, foi projetado a poucos metros de distância. Tudo parou. Como zumbis as pessoas convergiram para o ponto de impacto, se aglomeraram aos burburinhos. Não sei por qual motivo meu pai desligou o carro e saiu para a mesma direção. Não parecia ser ele, outra pessoa lhe tinha usurpado. Meu tio e eu seguimos atrás dele. Meu pai foi tragado pelo público, logo seria digerido num estômago gigante a lançar ácidos corrosivos. O sangue puro, maculava o asfalto imundo. Fluidos, cabelos, olhos arregalados, face desfigurada. A morte chegara antes de todo mundo, como filha de Deus ela sabe que a colheita começa cedo. Meu pai segurava minha mãe nos braços. Ao redor pedras de gelo se derretiam indiferentes. Água e sangue. Vida e morte. Meu pai gritava desesperado. Os mortos não ouvem. Em meio à flacidez de seu rosto, lágrimas escorriam feito vela derretendo.

Odair Comin

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