sábado

Contos: Noviça Serafina


Mosteiro da Luz – Capitania de São Paulo, 1885.


O isolamento não é para todos. Viver em uma ilha quando se tem um continente a disposição é tarefa titânica. Esperar por esse dia por longos anos, demonstra um desejo que se exime à explicações. Serafina está sentada em meio aos pais, a carruagem fere a terra, deixando para trás os vergões fugazes. A moça não cabe em si, uma dúzia de Serafinas não seriam suficientes para aplacar a fruição de sua alma. O cocheiro puxou as rédeas e os cavalos obedeceram. A parada foi em frente ao Mosteiro da Imaculada Conceição da Luz. O pai de Serafina tocou o chão, logo atrás a filha se moveu como uma sombra colorida. Serafina completa hoje 18 anos, a clausura é seu presente. Ao portão de entrada, a filha abraça o pai, foi uma despedida rápida, ele não queria dar tempo à irrupção dos seus sentimentos. Com uma mesura e um pedido, fundiu-se à carruagem: “escreva filha”. O abraço materno, regado à lágrimas abundantes, foi mais demorado.
“Seja comportada filha e que Deus a abençoe”. Advertiu a mãe.
“Podes deixar mãe, esse é o meu sonho, farei dele minha vida. Me entregarei de corpo e alma a Deus nosso Senhor”.
Emoldurada pelo batente, a Abadessa Isabel da Cruz aguardava a cerimoniosa despedida. Serafina encontrou naquele semblante tudo o que se pode esperar de alguém em suas condições. Num meneio mútuo, a anfitriã recebeu a recém chegada.
“Bem vinda Serafina, sou a Abadessa Isabel”.
“Obrigada, estou muito feliz de estar aqui”.
“Venha, que lhe apresentarei o mosteiro, podes deixar as malas ai, elas serão levadas aos aposentos”.
Serafina não olhou para trás, sua vida passada se desprendeu de si, como uma alma que deixa o corpo. Sentiu uma mão delicada pousar em seu ombro, os demônios da ansiedade recolheram-se às masmorras do inconsciente, dando lugar aos querubins com suas harpas celestes. A Abadessa Isabel mostrou a capela, palco constate das devoções diárias. A sala onde receberia suas primeiras lições, o jardim onde passaria seus momentos de folga, a horta cultivada em benefício de todas. A cozinha, o refeitório e a lavanderia. Serafina conheceu a sacristia, nela exercitaria o bordado, além de produzir arranjos florais para ornar a capela.
“E esta será sua cama”. Informou a Abadessa.
O dormitório comportava vários leitos, o de Serafina era o terceiro numa fileira de dez, todos muito bem arrumados. Não teria um quarto exclusivo para si como em sua casa, mas seus votos de pobreza não tinham muito poder de barganha, não seria uma questão de resignação. Aceitou agradecida. Reconheceu as malas ao pé da cama, foi como um bote salva-vidas em meio ao mar de novidades. Serafina ficou sabendo onde guardaria suas roupas, que não eram muitas, a partir de agora teria vestuário uniforme, todas devem ser iguais aos olhos de Deus.
“Após o almoço, terá uma sabatina de adesão com Frei Galvão, descanse um pouco, quando chegar a hora será chamada”. Declarou Isabel da Cruz.
“Posso caminhar pelas dependências?” Perguntou Serafina.
“Sim, mas esteja no refeitório pontualmente ao meio-dia”. Advertiu a Abadessa, despedindo-se com um aceno.
Serafina caminhou pelo jardim, rosas de diferentes matizes, margaridas, amores-perfeito, bromélias, encantou-se com uma dália amarela. Na capela, foi recebida de braços abertos pelo Cristo crucificado, figuras sacras, vitrais e o silêncio que tudo permite. Molhou a pontas dos dedos com água benta, fez o sinal da cruz com uma genuflexão. Buscou uma bancada e ajoelhou-se para rezar. Agradeceu a Deus por ter sido bem recebida, não mediria esforços para seguir a risca a cartilha das Concepcionistas.
Às doze badaladas, Serafina irrompeu o refeitório como se estivesse entrando em um salão de baile. Uniformizada que estava, as colegas demoraram a perceber sua presença. A Abadessa Isabel da Cruz tão logo identificou-a, saltou do meio das freiras feito uma piracema contra a maré, pousou a mão sobre às costas da novata e disse.
“Atenção todas, por favor. Esta é Serafina”.
Serafina sentiu olhos a cravejarem como um enxame de abelhas, mas não eram olhares para ferroar, antes sim, doces como o mel.
“Hoje é seu aniversário, três vivas para ela”. Bradou a Abadessa.
“Viva, viva, viva”. Gritaram em uníssono, seguido de uma salva de palmas.
Serafina passou pelo ritualístico corredor polonês, recebendo o toque de boas vindas de cada uma das colegas. A mesa estava posta e todas se serviram em meio a um burburinho peculiar, e foi assim até estarem saciadas.
“Serafina”. Chamou uma voz nada familiar. “Frei Galvão quer vê-la, me acompanhe por favor”.
As paredes de adobe não possuíam a moldura de nenhuma janela, apenas um quadro a óleo do atual papa Pio VII, a enfeitava. Um genuflexório de mogno descansava na parede da direita, no lado esquerdo, um armário do mesmo material. No fundo da sala uma mesa feita com cortes de Pau Brasil, na frente dela, duas cadeiras empalhadas e atrás da mesa, uma espécie de trono estofado em camurça vermelha. Sentada nela estava uma batina marrom, com um cordão branco na cintura.
“Muito bem vinda noviça Serafina, sou Frei Galvão. Sente-se”.
“Obrigada”. Disse Serafina, timidamente.
O que seguiu-se daí, foi um inquérito esmerado, com o fim de saber as reais intenções da pretendente, se estava segura de sua escolha e se tinha condições físicas e mentais para tanto. Serafina apresentou um exame feito pelo Dr. Florêncio, médico da família, o relatório sugeria que sua saúde ia bem, não tinha nenhuma doença, seja ela contagiosa ou não, muito menos era acometida por qualquer tipo de loucura. Serafina afirmou que era católica praticante, fiel a Jesus Cristo nosso Salvador. Afirmou ter recebido educação exemplar, dotada de boa índole, praticante de ações virtuosas, regularmente oferecia esmola aos necessitados e era verdadeira em suas palavras. Dizia ter ciência da vida abnegada que teria pela frente e do sacrifício a ser feito. A oração já vinha do berço, se dedicaria ainda mais. Afirmou adorar o silêncio e a solidão. Frei Galvão a mirava com satisfação, tudo o que queria ouvir saiu da boca da noviça. Serafina preenchia todos os requisitos.
“Fico feliz por tal disposição”. Disse Frei Galvão. “Sabes bem que é uma vida de clausura, mas não pense no que está perdendo, e sim no que vais ganhar. Serafina, a aceito, és bem-vinda ao Mosteiro Imaculada Conceição. A partir de amanhã cumprirá toda a rotina, e em 5 anos te tornarás uma freira Concepcionista.
“Obrigada Frei Galvão, tua fama já me era sabida, e vejo que não se enganam. Um dia ainda serás santo”. Afirmou Serafina.
“Está bem”. Disse Frei Galvão sorrindo. “Agora vá”.
“Desposar-se com Jesus Cristo nosso Redentor, venerando a Imaculada Conceição de sua mãe, a Virgem Maria”. Disse Serafina despedindo-se.

Um mês depois, Serafina já estava habituada ao ambiente, se dedicava aos estudos de Filosofia, Teologia e a ideologia do mosteiro. Acordava cedo para as orações matinais de adoração à Deus e participava da liturgia nas missas de Frei Galvão. Escrevera duas cartas e aguardava resposta, uma para seus pais, outra para sua melhor amiga, Mariana, com a qual tinha amizade desde criança. Estreitava a relação com a Abadessa Isabel da Cruz, a proximidade lhe rendeu alguns comentários, as colegas diziam que era sua protetora. Uma também noviça, que estava lá há 6 meses, não via com bons olhos, Marieta achava que Serafina havia lhe roubado o lugar de preferida. Até sua chegada, a Abadessa dava uma atenção visivelmente preferencial à Marieta, que agora ruminava um ciúme velado pelo distanciamento.
Serafina estava capinando na horta quando a Abadessa Isabel a chamou.
“Carta para você Serafina”.
A enxada tombou sobre a terra mexida, o rosto rubro do sol e as mãos trêmulas de ansiedade, receberam a correspondência.
“Obrigada Isabel”. Via-se ai, uma informalidade no tratamento. “São de minha mãe e de minha amiga, posso lê-las agora?” Pediu Serafina esbaforida.
“Podes, vá para a sacristia, lá não será incomodada”.
Por um instante Serafina retirou o lenço da cabeça e libertou os cabelos da prisão. Sentou-se em um banco e foi logo abrindo a carta escrita pela mãe. Ela contava sobre uma nova aquisição de terras pelo seu pai, dizia que estavam bem, que o irmão Pedro iria para o colégio franciscano em Taubaté, por onde também havia passado Frei Galvão. Todos estavam com saudades e ansiavam uma visita. Na outra correspondência, Serafina soube que sua amiga Mariana estava muito doente, agonizava com uma tuberculose, já havia emagrecido 7 kilos e a tosse constante a fazia expelir fluidos. Serafina leu incrédula as linhas visivelmente doentias, provindas de uma pena desvanecendo. “Preciso vê-la”, pensou Serafina, não poderia deixá-la neste momento em que tanto necessitava. Decidiu que conversaria com Frei Galvão e pediria dispensa por uma semana, ele haveria de entender.
“Mas não poderia se abrir uma exceção Frei Galvão?”
“Serafina, nossas regras não comportam exceções, em hipótese alguma sairá. Sabias muito bem quando entraste aqui. Reclusão total, abnegação da família, dos amigos, da vida que tinha. Não és mais a Serafina amiga de Mariana, és a Serafina noviça do Mosteiro. Não há mais uma vida lá fora, apenas aqui dentro. Não podes servir a dois senhores, se insistir será expulsa. Podes sair agora”.
Serafina viu Deus transfigurar-se no demônio, a doçura no azedo. Só pensava em chorar no regaço da Abadessa Isabel, e foi o que fez.
“Tua amiga terá os cuidados necessários, não poderás fazer nada lá fora, aqui dentro sim, reze por ela Serafina, intensifique ainda mais, jejue, peça a Deus por um milagre”. Disse a Abadessa.
“Sei que ela precisa de mim, sua carta foi um pedido de socorro, como posso me omitir”. Disse Serafina em meio às lágrimas.
Serafina adormeceu depois de beber do chá preparado pela Abadessa. Quando acordou o estado de desânimo voltou, alguns dias se passaram e ela parecia mais desolada. Pensara em fugir, mas não queria abandonar o Mosteiro. A traça da dúvida lhe carcomia as reservas de certeza. Vendo que Serafina não se animava com nada, Abadessa Isabel imbuída de uma benevolência maternal, arquitetou um plano para ajudar a pupila, mesmo sabendo dos riscos.
“Como sabes Serafina, todas às sextas-feiras Frei Galvão sai para visitas em comunidades, você terá algumas horas para ver sua amiga. Tenho um cocheiro de muita confiança que a levará até o destino. Tudo será feito com muito cuidado para que ninguém descubra”.
Serafina viu seu mundo resplandecer à chama de mil velas, nem mesmo as pílulas de Frei Galvão seriam capazes de tal milagre. Os dias se arrastavam como um bicho-preguiça árvore acima. Serafina aparentava normalidade, as colegas já não lhe perguntavam se estava tudo bem, suas atitudes diziam de seu contentamento. Na sexta-feira acordou antes de todo mundo, em jejum foi à capela, intercedeu pela vida da Abadessa Isabel, que se mantivesse sempre caridosa e para que nada lhe acontecesse por estar lhe acobertando. Pediu a Deus que fizesse cair um manto negro sobre os olhos de Frei Galvão, para que assim não enxergasse jamais sua fuga momentânea. Fazia com boa intenção, prometendo redobrar a adoração diária, a Deus, Nossa Senhora, Jesus Cristo e todos os santos.
A Abadessa Isabel da Cruz a encontrou ajoelhada.
“Serafina, está na hora, venha”.
Enquanto o mosteiro dormia, as duas atravessaram o jardim, chegando até o portão dos fundos. O cocheiro as esperava.
“Vá com Deus Serafina, não te preocupes, direi que estás doente e que ficarás de resguardo em meu aposento, ninguém irá me contestar”.
Serafina acenou deixando a tutora para trás e a fronte para um céu sem muros. Atrás de um pilar, escondido pelas sombras, dois olhos orvalhados de ódio as observavam.
Odair Comin
Psicólogo e Escritor
Autor do Romance: Jardim do Éden

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