domingo

Contos: Boomerang

Lembranças serão regurgitadas como um alimento indigesto. A mão quente sentiu a maçaneta como a um cubo de gelo. Nenhum esforço foi empreendido, a porta estava destrancada. Tão logo escancarada, um cheiro nauseante agrediu as narinas de Percival, num movimento involuntário os dedos tentaram salva-las do mau cheiro. A imagem que viu não era a costumeira. A organização e a limpeza haviam tirado o dia de folga. “Mas como era possível”, pensou o cérebro, enquanto o corpo avançava alguns passos na direção da cozinha. O grito preparou-se como um corredor em linha de partida, sem forças, deixou-se ficar. Antes mesmo das cordas vocais soarem, uma imagem o emudeceu.

O sangue já seco manchava o assoalho, um corpo espalhado no chão, deitado de um jeito que não era qualquer, mas também não tinha diferença de outros corpos inabitados por almas. A blusa perolada, tinha estampada na altura do peito uma mancha carmim púrpura, desenhada pelos fluidos que dali emergiram, por ali também fugiu um espírito. “Quem poderia ter feito isso”, foi o pensamento que brotou com duas lágrimas indecisas. Percival sentiu-se usurpado de suas antes, tão prestativas forças. Deu-se por conta que não tinha mais o domínio de seu corpo, o que lhe era estranho. Deu um passo atrás não querendo fazê-lo, mais um pé atrás, quando por vontade queria lançar-se sobre o corpo ensangüentado da esposa. Socorrê-la, descobrir se por acaso o sangue tivesse coagulado e impedido que toda a vida tivesse se esvaído, se ainda respirava, talvez pudesse salvá-la, quem sabe. Não, seu corpo não seguia sua volição. Nesse impasse, seus passos o conduziram de costas para fora de casa. Involuntariamente a mão agarrou a maçaneta, a mesma gélida sensação, com um agravante, a frieza esquadrinhou cada célula.

Indiferente aos transeuntes, que também andavam de costas, como se fosse a coisa mais normal do mundo, Percival queria sair correndo, mas o pretérito imperfeito tinha outros planos para ele. As mesmas imagens reais corriam ao seu redor, a bela moça falando ao celular, um mendigo cambaleava com uma garrafa na mão, um York Shire pego no flagra no momento de agora recolher suas contingências fecais. A visão mais bizarra que até o momento havia presenciado. Pessoas, carros, pássaros, animais e tudo o mais, indo na direção contrária que apontavam os olhos ou faróis. Os passos o conduziam para trás, fazendo-o atravessar a rua em direção ao ponto de ônibus, não viu as pessoas voltando para o coletivo, mas foi na mesma direção. Queria olhar para saber se estava pisando certo no degrau, não tinha necessidade, o corpo sabia muito bem o que estava fazendo. A condução levou-o de volta para o trabalho.

Percival andou olhando para a direção contrária, entrou pelo saguão do prédio, o mesmo sorriso no rosto da recepcionista. Pegou de volta o crachá, passou pela catraca, entrou no elevador que o levou até o 9º andar. Seu corpo o conduziu fazendo-o sentar-se em sua mesa, em frente ao computador. Religou, seus olhos pousaram na tela e ali ficaram por um longo tempo. O relógio na parede contava as horas na direção contrária. Os ponteiros desafiavam a programação, desafiavam a ordem natural, voltavam contra o tempo, como se fosse algo que pudesse ser decidido a qualquer momento. Agora quero andar para o futuro, não, agora quero voltar ao passado. Em verdade, a lei da gravidade do tempo atraia Percival para o pretérito perfeito.

Hora do almoço, dando ré, Percival foi até o banheiro, enxugou as mãos pra depois lavá-las. Escovou os dentes, em seguida abriu a tampa do vaso, recolheu a urina de volta ás suas entranhas, retornou ao refeitório. Sentou-se a mesa com o prato vazio, as garfadas retiraram o alimento de sua boca e o devolveram ao prato, que aos poucos foi se enchendo. Percival retirava o alimento intacto, sua garganta devolvia o feijão, o arroz, pedaços do bife, fritas, tamate, brócoles. Os goles do suco de uva eram devolvidos ao copo que se enxia pouco a pouco. Quando não havia mais nada em seu estômago, prato e copo estavam cheios. Levantou-se, devolvendo o alimento do prato ao buffet.

Novamente em frente ao computador, até que o relógio voltou às 08hs da manhã. Impelido a se movimentar, deixou o prédio. Caminhada, ônibus, caminhada, porta de casa. Percival queria pensar algo diferente, algo novo, só o que conseguia era pensar o que já havia pensado. O pensamento seguinte, era na verdade uma elocubração anterior, isso o angustiava. Se pudesse pensar como todos pensamos, veria a imagem do corpo de sua mulher estendido no assoalho da cozinha, lembraria. Não, como poderia lembrar de algo que ainda não viveu. Mas ele deveria lembrar diriam muitos, já que viveu sim. É, viveu, mas não é o caso de lembrar ou não, mas sim de não conseguir. Percival não pode lembrar porque o passado o governa, o passado é seu senhor, e um escravo não tem desejos, nem vontades; apenas segue um caminho já traçado, e por mais que se esforçe a correnteza é mais forte. Precisa se libertar do que foi, pra abraçar o porvir.

Os passos o levaram até o quarto, retirou a roupa como se estivesse colocando, sentiu-se de banho tomado. No banheiro aspergiu o perfume, enxugou o corpo e entrou no banho, sentiu a água morna a lhe banhar. A água não vinha apenas de cima, vinha também do chão, na direção contrária. Entrava e saia pelo chuveiro, a água do chão vinha avermelhada, seu corpo dantes limpo começava a sujar-se com um liquido avermelhado. Quando saiu do banho estava completamente ensanguentado. Olhou para suas mãos não acreditando. Os passos o conduziram para a cozinha. O corpo da mulher estava ali, o sangue fresco escorria. Percival abraçou-a, segurou em seus braços. Soltou-a como se a estivesse pegando. Por fim, arrancou a faca cravada no peito.

Odair Comin

Psicólogo e Escritor

Autor do Romance: Gaúcho Macho e Grosso

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