sexta-feira

Conto: Solidão Mortal

A guirlanda de flores naturais, exalava um odor amanhecido, nauseante. Haviam sido colhidas há dois dias e, sem a água que as manteriam vivas e perfumadas, perdiam a cor característica, bem como o aroma. É certo que por vezes as flores têm cheiro de morte, isso quando elas também estão morrendo, e estas da guirlanda, além dos buquês e ramalhetes, estão ai para confirmar esta verdade. Um cheiro de morte carregado pelo vento, espalhado pelos recônditos mais longínquos, mais isolados.
A multidão de pessoas se acotovela num pequeno espaço, todos querem chegar o mais próximo possível, querem presenciar este ato lúgubre.

Aqueles que já estavam aos prantos, prantearam com mais intensidade, os que até então estavam relutantes, não conseguiram mais conter as lágrimas. O cheiro que se desprendia das flores, misturava-se com o odorífero das velas que queimavam, as pequenas chamas iam de um lado para o outro ao sabor do vento. Nelson olhava enternecido o ataúde que descia cova a dentro. O caixão carregava sua esposa aninhada, para sua última morada, e nesta, não havia espaço para ele. Mesmo que tenha passado pela sua mente a vontade de estar ali com ela. Algumas relutantes lágrimas sulcaram seu rosto desolado, não é homem de chorar, mas desta vez está perdoado. A solidão fazendo dueto com a saudade, fizeram dele mais humano que suas crenças. Sobre a câmara mortuária, pétalas de rosas começaram a chover, eram de rosas vermelhas, foi um pedido que Dalva fez ao marido, em seu leito de morte.

Os amigos vieram lhe dar os pêsames, Nelson levantava o braço e apertava a mão de forma mecânica. Em seu rosto nada além da tristeza se via estampada, a perda o dilacerava como navalhas afiadas a cortar suas entranhas. Aos poucos o cemitério foi se esvaziando dos vivos, a nuvem negra enlutada, dissipou-se como uma manada de búfalos, espalhando-se sorrateira, escoando pelo portão principal e ganhando a direção da estrada. Uns para a direita, outros para a esquerda, caminhavam cabisbaixo e em silêncio, por respeito àquela que havia partido, e aquele cujo sofrimento era ficar. Pacientemente, Nelson esperou que todos o cumprimentasse, por fim se viu sozinho. Os coveiros ainda finalizavam o jazigo e foram os últimos a sair. Despediram-se com um meneio de cabeça, numa mesura empática e acolhedora de alguém tão acostumado com a morte. Mas sabedor que seu semelhante não é tão íntimo dessa deusa negra. Nelson aproximou-se da sepultura: flores, velas, terra, tijolos, argamassa, morte. Um corpo que deixou de ser presente. A conservaria em sua mente, em seu coração, até que ele estivesse novamente junto dela.

Nelson disse adeus e saiu, abatido e melancólico caminhou lentamente até onde havia deixado seu cavalo amarrado. Acariciou o focinho, o equino parecia compreender a dor de seu dono. Desamarrou os arreios, pisou no estribo já segurando na cela, impulsionou o corpo o saltou no dorso do animal. Com um meneio do focinho, o cavalo iniciou o tropel, já sabia o caminho, levaria o cavaleiro para casa. Em sua morada, Nelson não teria nenhuma companhia além dos animais e de si mesmo. Dalva nunca pôde conceber, por isso, mesmo depois de 40 anos casados, não passaram de um casal.

O sol pairava no centro do céu, o relógio marcava meio-dia. Nelson apeou em frente a casa, retirou a cela colocando-a sobre o alpendre, o cavalo amarrou numa macega de capim colonhão. Sentou-se sobre a escada do alpendre sentindo-se perdido, não sabia o que fazer, por onde começar. Sentia-se uma criança indefesa que acabou de perder os pais. Olhava sem direção o vasto mundo a sua frente, que agora não tinha mais significado algum, sentiu uma solidão mortal, como uma implacável morsa a lhe esmagar o corpo sem dó. Deprimido levantou dirigindo-se à dispensa, rescendia a cheiro de salame, que Dalva havia deixado ali há alguns dias atrás para curtir. Nelson pegou uma palha e um pedaço de fumo em corda. Não come desde ontem, mesmo assim não sente fome, o vazio que sente dentro de si, não seria preenchido com comida. Sentou-se na cadeira empalhada por Dalva há muito tempo atrás. O cavalo pastava despreocupado, o cacarejas das galinhas e o canto dos pássaros, preenchia o vazio que o silêncio queria impor. No potreiro, logo acima da casa, a junta de bois também pastava, a vaca, de nome Salina, desde ontem não fora ordenhada, o mugido que se ouve é pela dor que sente em seu ubre. Nelson não deu atenção, estava absorto em sua própria dor.

Do bolso retirou o canivete, cortou as duas pontas da palha de milho, passou-a na língua e depois na lâmina do canivete para amaciá-la, dobrou a palha e a colocou atrás da orelha. Pôs-se a picar o fumo como sempre fazia, cortou o suficiente para um cigarro, colocou o restante sobre o banco e guardou o canivete no bolso. Com a ponta dos dedos começou a desfiar o tabaco. Por um segundo Nelson pensou ter ouvido um barulho de panela vindo da cozinha, levantou de sobressalto, a passos largos adentrou pela soleira, o impulso fez a palha fugir de sua orelha. A cozinha estava tapera, tão despovoada quanto seu peito. Sobre a pia apenas uma esponja e um sabão de pedra. Aflito Nelson voltou para o alpendre, disse a si mesmo que aquilo não era loucura, que eram apenas sons remanescentes, sons que ainda ecoavam lá dentro, ou melhor, aqui dentro, pensou Nelson, apontando para sua própria cabeça. Aquele tilintar que por centenas de vezes ouviu enquanto preparava seu cigarro de palha. Foi em seu retorno, que percebeu a palha no chão, pegou-a. O fumo desfiado virou uma maçaroca em sua mão. Desfiou-o novamente e o depositou na palha, enrolou e passou na língua para colar as bordas. Procurou o isqueiro, o lume acendeu o pito, algumas tragadas tornaram a ponta incandescente, a fumaça se espalhou. Nelson sentiu-se confortado pelo aroma familiar do tabaco.

Enquanto baforava, Nelson pôs-se melancólico com as lembranças de sua vida com Dalva. Lembrou-se do primeiro dia em que a viu, foi após uma missa de domingo, Dalva era ainda uma mocinha, havia chegado no vilarejo fazia poucos dias. O olhar teve um impacto que nenhum dos dois jamais esqueceu. Dalva estava linda com um vestido de renda florido, os cabelos até os ombros e uma fita vermelha amarrada. Usava sapatilhas e caminhava como se deslizasse pelo caminho. Nelson ficou maravilhado, mas demasiado tímido para uma aproximação. Sua sorte foi que a moça também ficara impressionada com ele, o que facilitou muito. No início da semana, descobriu que a desconhecida iria freqüentar a escola em que também estudava, assim as coisas ficaram mais fáceis, e com a ajuda de colegas, o namoro teve início. Alguns anos depois estavam casados, nem mesmo a impossibilidade de conceber, diminuiu o amor que sentiam um pelo outro. Estavam sempre juntos, cuidavam da casa, dos afazeres na lavoura, tinham seus momentos de diversão e viviam felizes. A felicidade de Nelson teve uma existência de 40 anos, o tempo que ficou casado com Dalva. Agora, a felicidade parecia se esvair como água pelo vão de seus dedos. As lembranças se apagaram juntamente com o cigarro, a bituca foi jogada no terreiro.

Nelson apertou os olhos, pensou ter visto a esposa a colher alface na horta, fechou os olhos por alguns segundo. Não me martirize ainda mais meus Deus, pensou ele. Ao abrir viu que na horta não havia ninguém. Nelson foi colher algumas ramas de mandioca, fez um feixe e jogou em seu ombro. No chiqueiro dois porcos esperavam pelo alimento. Quando Nelson jogou as ramas, os suínos pareceram desesperados em abocanhar a ramagem. Eles estavam famintos, foi o que ouviu Nelson. Ao virar-se viu Dalva que o mirava com um olhar doce e acolhedor. Não pode ser real, pensou ele. Cerrou fortemente os olhos contraindo todo o rosto, chegou a sentir dor, aquela alucinação precisava ir embora. O que foi Nelson?, poderia fechar os olhos, mas e os ouvidos? E o ar que estava respirando, impregnado do aroma de rosas de sua Dalva. Nelson abriu os olhos que lacrimejavam, Dalva estava bem ali na sua frente, da mesma forma que a viu pela primeira vez há 42 anos atrás. O mesmo vestido, a mesma fita no cabelo, a mesma sapatilha. Dalva lhe estendeu a mão, relutante Nelson aproximou-se e sentiu a ternura daquele toque. Mas como é possível, velamos teu corpo, a vi dentro do caixão sendo enterrada, disse Nelson. Querido, esqueça o que viu, esqueça o que faz parte do que já não tens, volte teu olhar para o agora, olhe para mim, veja o que pode ser visto, veja o que teus olhos podem te mostrar. Devo estar enlouquecendo, pensou Nelson. Ah! A loucura, o que é a loucura querido, o que é a sanidade, esqueça tudo isso Nelson, venha, vamos caminhar. Estou perdido sem ti, disse Nelson. Bem, agora cá estou, trate de te encontrar. O que vamos fazer minha querida? Que tal irmos a cachoeira onde íamos quando jovens, hein? Está bem, vou encilhar o cavalo. Não te preocupes, vamos andando, não somos mais jovens, mas ainda temos força. Nelson segurou na mão da esposa e começaram a caminhar. A cachoeira ficava há uns dois km de sua casa. Andaram enquanto observavam as plantações ao seu redor, passaram pelas casas de vizinhos sem avistar ninguém. Adentraram por uma trilha que os levaria até o local. Digas minha querida, estou a sonhar? E como um sonho poderia ser tão real Nelson, não querido, está é a realidade que sempre quis.

A mata tornou-se mais densa, a trilha mais estreita, Nelson ia à frente quebrando os galhos para abrir caminho. Sentiu uma ardência no braço, quando olhou percebeu que estava sangrando. O que foi isso querido? Acho que passei o braço em algum espinho. Vamos cuidar disso. Não foi nada, está tudo bem. Enfim chegaram, a água descia abundante pelo precipício à sua frente, um grande lago se formava onde em épocas remotas este mesmo casal banhava-se sem pudor. Nelson lavou o sangue que já estava secando em seu braço, o corte não tinha sido profundo. Ao olhar para o lado viu que Dalva entrava na água. O que está fazendo querida? Venha, vamos nadar. Dalva, podes te machucar, então deixe-me te ajudar. Nelson segurou em sua mão enquanto adentravam. Está fria. É querida, é sempre fria quando entramos, logo a sentirá melhor. Num gesto inesperado, Dalva colheu água com as mãos em concha e jogou no rosto do marido. Nelson paralisou pelo ato e a frieza do líquido, mas logo soltou uma gargalhada e fez o mesmo. Ficaram ambos brincando como duas crianças. Nelson olhou para o céu como se agradecendo por aquele momento. Quando voltou os olhos para a água não viu mais sua amada. Dalva, Dalva, cadê você? Olhou ao seu redor sem ver nada. Rapidamente mergulhou com a esperança de encontrá-la. Desesperado Nelson nadava, mergulhava, chamava o nome da esposa. Batia os braços freneticamente, os gritos o trouxeram à realidade. Se debatia deitado no chão do chiqueiro. Foi um sonho, pensou, apenas um sonho. Nelson levantou, o entardecer trazia o som das cigarras. O crepúsculo prenunciava a escura noite. Nelson sentiu uma dor no braço, olhou e viu o arranhão que já começava a cicatrizar, não deu atenção. Levou o cavalo ao estábulo jogando um feixe de capim. Seu estômago roncava de fome, mas não sentia vontade de comer.

No galpão juntou alguns gravetos e pedaços de lenha. Na cozinha depositou numa caixa e fez o fogo no fogão à lenha. O entardecer trouxe uma brisa um pouco fria, mesmo estando no verão. Logo o fogo aqueceu a cozinha. Fechou os olhos sentado na cadeira. Queria que Dalva viesse novamente em sua mente, que se torna-se tão real quanto a pouco. Queria ver novamente aquele rosto, sentir novamente seu cheiro. Nada, pelo contrário, parecia que se distanciava cada vez mais, como se suas lembranças começassem a despencar num profundo poço escuro. Não, a realidade é que nunca mais veria sua amada. Nunca mais poderia ter as conversas que tinham, nunca a ouviria dando-lhe uma bronca, porque deixou roupas espalhadas pelo banheiro, não degustaria a sopa de legumes, o feijão com arroz, o macarrão, a carne com batatas e tantas outras especiarias. Não sentiria mais o sabor dos seus beijos, o calor do seu corpo em noites de amor. Não passeariam de mão dadas, nunca mais iriam rir das piadas sem graça que por vezes Dalva contava. Não ouviria o som da sua doce voz a lhe chamar para que se levantasse da sesta. Não, nada mais poderia ser vivido com sua presença. Nelson sentiu uma dor lancinante a lhe espreitar o peito, curvou-se sobre as pernas e chorou. As lágrimas brotavam abundantes de seus olhos, a dor lhe golpeava como um machado a cortar lenha. Nelson despencou da cadeira, no chão encolheu-se como um feto, contorcia-se tamanho sofrimento. Não chore Nelson, a voz lhe tirou do transe em que se encontrava, volveu os olhos para cima, viu a lâmpada no teto a brilhar, ofuscando-lhe a visão. Olhou ao redor, nada viu. Como irei viver sem ti, minha querida? O grito certamente foi ouvido a uma longa distância. Porque Deus, porque não levaste a mim, porque me deixaste. Não é justo. Nelson se lamentava pelo infortúnio de perder a pessoa que mais amava, a pessoa que fora sua companhia pela maior parte de sua existência. De que vale minha vida agora? Não vale nada, tiraste meu alimento, meu ar, meu amor. Me sinto oco, vazio, me sinto uma casa abandonada.

Resoluto, Nelson levantou-se, havia tomado uma decisão dentro de si, algo que certamente poria fim a infelicidade, não suportaria mais essa dor, nem por um minuto, foi até o quarto e pegou algo que guardou em seu bolso. Dirigiu-se ao estábulo, tirou o cavalo para fora, mas não encilhou. Montou em pêlo e tomou a direção do cemitério. No céu milhares de estrelas iluminavam o firmamento. Aos poucos os olhos foram se acostumando à escuridão. O som do tropel do cavalo misturava-se aos sons noturnos, o coaxar de sapos, o pio de corujas, o estridor de grilos, o voejar de morcegos. Não levou muito tempo para que Nelson chegasse ao campo santo. Apeou do cavalo o amarrando em uma madeira da cerca. Procurou por entre os caminhos estreitos o jazigo de Dalva. Tropeçou em algo, a dor em sua canela fez seus músculos se retesarem. Algumas velas ainda ardiam, uma bruxuleante luz ia se extinguindo aos poucos. Na penumbra ajoelhou-se e pediu perdão a mulher do que estava prestes a fazer. Rezou por alguns minutos. Retirou o que havia trazido em seu bolso, um pequeno frasco âmbar, retirou a tampa e num golpe engoliu seu liquido. Nelson sentiu o veneno a lhe invadir as entranhas. Ainda deu tempo para deitar-se ao lado da sepultura da esposa. O ar começou a lhe faltar, os pensamentos se embaralharam. Sua linda Dalva estendeu-lhe a mão, ele a segurou com ternura. Uma aura alva cobriu seus corpos, foi seu último pensamento. Nelson estava novamente junto de sua esposa.
Odair Comin
Psicólogo e Escritor
Autor do Romance: Gaúcho Macho e Grosso

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